Acomodações provisórias

 

Ao olhar no espelho, nos reconhecemos nesta imagem? O corpo e a nossa posição subjetiva no mundo: qual a relação entre eles? Estamos des/acomodados em nosso corpo? Como ocupamos os espaços na nossa vida? Escolhemos em nome próprio?

Uma boa referência para pensarmos essas questões é o documentário Laerte-se*. Trabalho rico de Eliane Brum e Lygia Barbosa da Silva sobre Laerte Coutinho, cartunista que há alguns anos está num processo belo e corajoso de mudança. Mudança de que? De corpo? De sexo? De posição frente ao que a sociedade espera dele a partir de seu sexo? Poderíamos dizer, de forma mais objetiva, que é uma mudança de identidade de gênero, mas não, melhor deixar em aberto, assim como o próprio Laerte propõe, não se trata de ser homem ou mulher, trata-se de uma busca. E que busca seria essa?

Ao longo do documentário, a relação entre a subjetividade, o corpo, a casa e o trabalho de Laerte, vai sendo explorada de modo sutil, e podemos perceber um fio que vai fazendo conexões e dando forma a uma complexa trama que é a pessoa, neste caso, Laerte. No início do filme, Laerte fala de um estado “provisório-eterno”, referindo-se ao modo como habita a casa onde mora há doze anos. Há algo de maravilhoso nisso! Falar da casa é também falar do corpo, falar de si. Podemos fazer do corpo nossa casa, habitando-a, apropriando-se dela, ou não. Fazer dele nossa imagem, nos reconhecendo nela ou não. Mas o que seria não se reconhecer nesta imagem?

Segundo uma das perspectivas da Psicanálise, “estamos inscritos num campo de linguagem”. Isso significa que, antes do nascimento, já existimos no pensamento de alguém. Somos imaginados e até viramos personagem de uma história. Podemos ser um herói ou um vilão, uma benção ou uma maldição, um amigo ou um inimigo, de acordo com os desejos, medos, sonhos e fantasias desse alguém que vai nos dando uma primeira forma, uma primeira roupagem, uma primeira morada.

Essa imagem, produzida pelo desejo do outro, será lançada em nossa direção. Imagem e desejo que são fundamentais, pois servirão de alicerce para a construção de uma estrutura. De nossa estrutura psíquica, de nosso esquema corporal, de nós. Uma ‘habitação provisória', tomando emprestado o termo de Laerte, necessária para o início do nosso desenvolvimento. Um início que não nos dá muita escolha e, no máximo, berraremos contrariados - serão as doses de amor que facilitarão as acomodações.

À medida que crescemos, tendemos a nos sentir cada vez mais estranhos dentro dessa morada. Estranhamento que pode se expressar no corpo como uma pressão, uma excitação, uma dor, e produzir estados emocionais como angústia, tristeza, euforia, e muito mais. Estados que podem nos paralisar ou nos impulsionar.

Sentir-se estranho num lugar conhecido, muitas vezes nos mobiliza movimentos de adequação. Cremos que se nos ajustarmos suficientemente, encontraremos a felicidade. Nos sentiremos completos! Será?! Mas, e se todo esse desconforto nos levar a outro caminho, o de questionar este lugar? Abre-se uma nova possibilidade. Temos então, duas saídas: ou ficamos tentando nos ajustar incessantemente a esta imagem, ou partimos em busca de novas acomodações.  

Mas que acomodações nos servirão? O que me resta se não sou o que esperam de mim? Não haverá uma casa à vista, apenas um caminho pela frente, uma busca, um estado “provisório eterno”, um vir-a-ser. Este desconhecido fala de outra posição subjetiva, diferente daquela que estamos habituados a ficar. Definitivamente, não é um lugar fácil, mas é lá que a possibilidade de se desejar verdadeiramente pode surgir.

Surgem muitas questões. O que eu quero ser? Quem eu me permito ser? Tenho direito de ser e fazer o que eu quiser? Estou seguro? Eu me sustento nessa ou naquela escolha?

Estar fisicamente no mundo exige uma dose de segurança”, reflete Laerte, que ao pensar na possibilidade de fazer uma mudança em seu corpo, se faz quatro perguntas: Eu quero? Eu posso? Eu preciso? Eu devo? Ele consegue responder as três primeiras, mas se enrosca na quarta. A quarta "diz respeito ao olhar do outro", diz ele. E, sim, o olhar do outro estará sempre ali.   

Pois é, apesar de buscarmos um lugar cada vez mais próprio, há sempre o desejo de um outro atravessando esta relação que estabelecemos com nosso corpo, com nossa casa, com nosso trabalho, com nosso modo de ser e estar no mundo.  Nos deparamos com conflitos. Tempos de guerra e tempos de paz se intercalam em nossa existência.  

Mudar de lugar, de posição, mudar algo em si, implica em algo muito maior que uma simples ação. Algo que fala da relação que estabelecemos com o outro, com o mundo. “O corpo é uma parte de uma negociação complicada, diz Laerte”.

O corpo, como fronteira entre o Eu e o mundo, dá contorno à nossa forma e explicita o tipo de transação que estabelecemos com ele. Então, a questão que se coloca é: Quanto as transformações que promovemos em nós mesmos, em nosso corpo, em nossa vida, estão em função de uma posição subjetiva própria, de uma nova transação com o mundo, ou quanto elas estão na direção do olhar/desejo do outro, de forma repetida? Corpos desejantes ou corpos capturados?  

 

Texto produzido por Vivian Sayuri Teixeira da Silva, analista da rede de atendimento do Elabora Psicanálise.

 

*O documentário "Laerte-se" está disponível no Netflix. Vale a pena!

 

Vivian Sayuri Teixeira da Silva

Vivian é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Inicia sua formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientae em 2007. Conclui o curso de aprimoramento - Fundamentos da Psicanálise - no Departamento de Formação em Psicanálise. Atualmente faz o curso de especialização em Psicanálise no Departamento de Psicanálise. 
Sua atuação clínica teve início em 2007. Foi terapeuta estagiária e voluntária na Clinica do Instituto Sedes Sapientae e no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 
Atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório e é terapeuta do Projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientae. 

O material dos sonhos

sonhos psicanálise
todos os espíritos dissipam-se no ar, no ar impalpável
e como altivos palácios, dissolvem-se sem deixar vestígios
Somos dessa matéria de que os sonhos são feitos
e a nossa breve vida é circundada pelo sono
— Shakespeare, A Tempestade

Um oficial, com uma capa vermelha, corria atrás dela na rua. Ela fugia dele, e subia correndo os degraus, e ele sempre atrás. Ofegante, chegou a sua casa, bateu a porta atrás de si e trancou-a. Ele permaneceu do lado de fora e, quando ela olhou através da vigia da porta, ele estava sentado num banco e chorava...

Ele encontrou sua irmã em companhia de duas amigas que eram, também elas, irmãs. Cumprimentou com um aperto de mão a ambas, mas não a própria irmã...

Dois enfermeiros a seguravam fortemente, com mais força do que o necessário, enquanto o terceiro, aparentemente o doutor, preparava uma seringa com líquido branco quase incolor. Ela estava petrificada, mas não se deixava dominar. Chutou um aqui e outro ali, mas no fim o médico conseguiu proceder com a injeção que a tranquilizou e botou-a para dormir - não sem antes, muito assepticamente jogar fora a seringa, passar um pouco de álcool no ponto perfurado e limpar todo o local...

Eu estava em um ônibus à caminho do trabalho, quando assaltantes entraram e renderam a todos. Eles queriam que o veículo continuasse em movimento para disfarçar, enquanto pegavam as coisas dos passageiros. Foi quando me levantei e coloquei minha carteira para fora da janela, pensando que se fosse para perder a carteira, preferia que não fosse para eles. Estava preparado para jogá-la o mais longe o possível...

Sonhei que cuidava de um passarinho de asas quebradas, até que ele se recuperou e voltou a voar. Sonhei que estava caindo. Sonhei que perdia os dentes. Sonhei que estava voando. Sonhei com um sino badalando... e acordei com o despertador tocando!

Talvez não haja nada mais famoso no edifício psicanalítico que a inaugural alcunha da Interpretação dos Sonhos, titulação esta atribuída ao livro de Freud cuja data escolhida de publicação foi o ano de 1900. Nele se encontram os estudos e descobertas do autor com relação à temática, em um nítido esforço de retirar das mãos dos charlatões e mesmo do senso mais comum - bem como dos médicos neuropsiquiatras e filósofos da época também -, o domínio do entendimento onírico, que previa o sonho ora como premonição, mensagem de espíritos, anúncios proféticos, ora como tendo cada fragmento simbólico próprio um determinado significado específico, válido igualmente para todas as pessoas. A briga foi renhida, e o triunfo médico-religioso não tardou a se mostrar, bastante evidente nas interessantes e atuais bibliografias psicofisiológicas e de cunho exotérico tão presentes nas estantes das livrarias. Isso não quer dizer que nada tenha sobrado do percurso freudiano. Muito pelo contrário! Mas não estou me referindo aos aproveitamentos que vez ou outra aparecem nas revistas cientificamente especializadas, dizendo coisas como 'descobertas recentes das neurociências mostram que Freud estava certo'. Tento me referir ao curioso efeito que a própria obra do autor teve sobre ele mesmo, remontando-o à sua própria fundação e, uma vez mais, contrariando o que ele mesmo buscava escrever, a saber: um livro que ensinasse a serem os sonhos interpretados. Mas espera, calma, vamos com calma. Pensemos no que seria o sonho.

Freud, nesse primeiro momento, comungava com o Talmude (livro da sabedoria judaica) que há séculos sentenciava que "todo sonho que não se interpreta é uma carta que fica sem ser aberta". Isso não quer dizer que ele estava em total desacordo com o potencial curativo ou criativo dos sonhos, coisas que continuadores de sua obra tais como Ferenczi e Winnicott fizeram questão de privilegiar em termos de 'elaboração psíquica'; que o sonho fosse uma encenação dos aspectos da vida de uma pessoa, isso em nada incomodava Freud. Apenas que ele estava realmente preocupado com a perspectiva de o sonho direcionar-se à apresentação de uma realização de desejo - um desejo, desde sempre, infindável. Freud pensava em como as coisas apareciam nos sonhos de modos disfarçados, como que em jornais em épocas de ditadura que não podem exprimir suas opiniões políticas senão por meio de alegorias e alusões escondidas. Um desejo estaria sempre por lá, a espreita, mas vestido em roupas descaracterizantes, uma vez que geralmente tratam-se de vontades inaceitáveis à consciência moral da própria pessoa. Incapaz de surgir de um jeito, a Coisa Freudiana viria de outro. E assim o autor descreveu modos de simbolismo e substituição, condensação e deslocamento, nos quais, por exemplo, certas imagens surgiam no lugar de outras (às vezes uma imagem representava uma variedade de outras de uma vez só), e partes eram tomadas pelo todo. Isso quer dizer que os sentidos não eram simples e diretos. Sonhar com um cavalo selvagem poderia querer dizer uma completa outra coisa que não um cavalo selvagem. Poderia ter que ver com uma relação de um sujeito com seu pai garanhão. Poderia ter que ver com força e impetuosidade ou mesmo, o oposto, medo e fraqueza. Tudo dependeria das associações que se aplicariam ao tal conteúdo do sonho. E eis aqui um ponto-chave: porque um sonho, em si, não quer dizer nada. Ele simplesmente é já um dizer, apreciado já num momento secundário chamado relato do sonho. A questão da psicanálise é favorecer para que a associação livre, que é o sonho que sucede o sonho, chegue a ser, como rodapé, mais interessante que o texto. São as associações mais que os 'sonhos' que nos interessam. E, mais uma vez, aqui, a outra virada-chave: valerá que chamemos esse dizer-que-vai-se-dando também de sonho, porque é dele que de fato recolheremos os efeitos.

Um sonho, para a psicanálise, não é aquele processo fisiológico que grande parte dos mamíferos realiza ao fechar os olhos e atingir ondas REM. E o sonho tampouco é aquela massa figurativa surrealista que nos esforçamos por degustar ao abrir os olhos. O sonho, para a psicanálise, pode ser qualquer coisa. Pode ser um pensamento, pode ser um raciocínio, pode ser uma ação, pode ser um objeto, pode ser a morte, pode ser um significante que se cria, pode até ser um sonho mesmo. O sonho que nos interessa é aquilo que opera sobre o sujeito, empurrando-o até mais perto de sua fundação. É o processo (dito psicanalítico) que estará acontecendo quando o sentido dado pelo analisante ao sonho - o que significa que é ele quem interpreta, e não o analista -, quando este sentido junto com o sentido de tudo o mais que se liga ao sonho, que foi associado a ele: quando tudo isso, que é sonho sobre sonho, que é o sonhar ali se dando, quando isto, assim querido e crido objeto não de análise, mas objeto capaz de operar sobre o sujeito, revelando-o então, ao fim, como um sonhador, um algo sonhado pelo sonho próprio e que só o foi num depois. Digo, um sujeito que é só ao fim revelado, por seu próprio sonho, como um efeito do que sonhou, sem que antes estivesse lá. Um sujeito que é poema e não poeta, que é produto e não produtor. Pois, que ao associar e deixar-se sofrer os efeitos do que disse, do que sonhou, sem se esquivar, sem se pensar enganado, e sem estar sob total controle, eis o produto do sonhar: o sujeito ao sonho.

Texto produzido por Estanislau Alves da Silva Filho, analista da Rede de Atendimento do Elabora Psicanálise.

(autor que, por sua vez, torna-se produto do que produziu)

 

Vivian Sayuri Teixeira da Silva

Vivian é graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Inicia sua formação em Psicanálise no Instituto Sedes Sapientae em 2007. Conclui o curso de aprimoramento - Fundamentos da Psicanálise - no Departamento de Formação em Psicanálise. Atualmente faz o curso de especialização em Psicanálise no Departamento de Psicanálise. 
Sua atuação clínica teve início em 2007. Foi terapeuta estagiária e voluntária na Clinica do Instituto Sedes Sapientae e no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. 
Atende crianças, adolescentes e adultos em seu consultório e é terapeuta do Projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientae. 

Narcisismo, meu amor

Mesmo sentado em um banco dos réus é sempre interessante ouvir falar da gente.
— Albert Camus 
Nenhum lugar pode ser realmente interessante se eu não frequento ele.
— Augusto Branco

 

Dia destes, à caminho do consultório, uma curiosa dúvida se apresentou a mim: 'desculpe, mas o que é narcisismo?' Ela chegou como que de surpresa, da boca de uma interessada senhora que vinha sentada acompanhando minha metroviária viagem pela leitura de um livro cuja capa trazia em letras garrafais uma tal alcunha: 'NARCISISMO'. Divertida situação, e que logo me fez sentir-me despreparado para simplesmente responder tão prontamente. Não que não conhecesse certas variações teóricas psicanalíticas relacionadas ao tema, que não tivesse estudado umas tantas páginas de livros e livros que tratam do assunto e de suas nuances e complexidades e tudo o mais [de processos psíquicos normais e patológicos, narcisismos primário e secundário, etc.]; não é isso. É que justa e especificamente, senti a dificuldade de ter que sintetizar e tornar algo no meio dessas coisas compreensível e clarificado, de modo a ofertar à interpelante questionadora algum esboço de retorno pelo devida indagação.
 
Resolvi arriscar: 'É o investimento afetivo que alguém tem em si mesmo, durante toda a vida, desde o nascimento.' 
'Investimento afetivo?', disse a senhora em tom irresoluto. 
'Sim, algo como amor próprio', repliquei. 
'Amor próprio eu entendo; já investimento afetivo... Bem, aqui cheguei à minha estação, obrigada!'
Devolvi-lhe um sorriso e despedimo-nos silenciosamente.

Mas continuei pensando na questão, e em como seria se ela, interlocutora, tivesse proposto um 'E que mais?', após a primeira devolutiva. 'Que mais além de amor próprio?' Será que eu falaria para ela algo sobre o mito de Narciso, que apaixonado pela sua própria imagem se afogou no lago? Será que apostaria numa aproximação pelo senso mais comum e convocaria o mandamento de Jesus, de 'ame ao próximo como a ti mesmo', para em seguida tentar dizer que somente alguém que se ama de verdade é que pode dar a outro um vivo amor? Ou será que valeria entrar em uma elucubração social relacionada ao individualismo e ao egocentrismo crescentes e impulsionados pelas tecnologias e meios de consumo atuais? Não consegui me decidir.

Pouco depois, chegando ao consultório e encontrando dois colegas analistas, resolvi incluí-los no dilema: 'como vocês responderiam à senhora?' Ambos partiram do mito de Narciso para dizer o que lhes ocorria. O primeiro ponderou: 'narcisismo é um elemento da mente que presente desde sempre serve para (1) os pais amarem seus filhos, (2) os bebês amarem a si mesmos e se reconhecerem como pessoas, e (3), quando em excesso, conduz a adoecimentos mais ou menos intensos, de acordo com o tanto de perda de si em si'. O outro disse: 'para a psicanálise, seria o processo de estimar-se a si, de olhar para si, muitas vezes deixando de olhar para todo o resto, possivelmente atropelando-o ao colocar-se na frente'. 

Gostei das ideias, e agradeci-lhes a atenção, enquanto dirigia-me a minha sala para aguardar o cliente. Sentei-me na larga poltrona e notei que ainda restavam alguns minutos até a hora da sessão. E com o livro ainda em mãos, por que não uma última revisada nesta temática de até então? E com distinção, o livro trazia uma breve categorização que não se pretenderia absoluta: haveria um narcisismo saudável, um narcisismo destrutivo e aquele relativo à uma fase do desenvolvimento, todos igualmente presentes na vida de cada um. O narcisismo saudável se refere àquela necessária dose de amor próprio que nos possibilita levantar todos os dias e suportar as desestimulantes agruras do dia-a-dia. O destrutivo estaria mais relacionado àquilo ou àquele a quem costumamos chamar de narcisista, aquela pessoa desagradável, inconveniente, que só fala de si mesmo e não tem consideração nem respeito por ninguém. Quanto à etapa desenvolvimental, a ela caberia a tarefa de proteger, organizar e integrar a imagem corporal e a identidade de si, como um momento em que a criança, amada por seus pais, consegue desfrutar sadiamente de sua espontaneidade e energia: por exemplo, um menino de 3 anos saltando de um sofá para outro, gritando "olha como eu pulo alto!" [claro, não precisa ser assim; este exemplo vale apenas como ilustração que contrasta com um outro estado: talvez houvesse um problema caso a criança possuísse um sentimento de vergonha muito intensa ou mesmo uma aversão a si, não conseguindo manifestar uma maior dedicação a si]

5 minutos faltantes. Penso que posso matar este tempinho. Leio a introdução, que diz algo como: "O narcisismo começa nos espelhos - no espelho que é a mãe, cujos olhos cintilantes e sorriso receptivo refletem o encanto pelo filho; o 'salão dos espelhos' sedutores mas claustrofóbicos dos pais superprotetores; o espelho frio e sem vida que o suicida encara num banheiro vazio; a lâmina de água que se desfaz em milhares de formas quando Narciso, em vão, se aproxima para tocar o seu reflexo." Reflito: Sim, narcisismo é espelho, é imagem de mim. Mais que isso, é fazer com isso, fazer com essa imagem. Fazê-la para lá e para cá. Fazê-la operar, funcionar. Pra se reconhecer sem maior se estranhar e poder dar 'Bom Dia!' e pagar promissórias, que sejam promessas e não só estórias. Enfim, este verso em prosa, harmonia de opostos, me acalmou. Começamos a sessão.

[O livro em questão é o volume 11 da coleção Conceitos de Psicanálise, da Revista Viver Mente e Cérebro, intitulado 'Narcisismo' e escrito inspiradamente por Jeremy Holmes (publicado em 2005, no Rio de Janeiro pela Relume Dumará/Ediouro e em São Paulo pela Segmento Duetto). E para maiores e mais profundos estudos, vale mencionar o livro "Narcisismos" de Oscar Miguelez (lançado em 2007 pela editora Escuta), que se debruça minuciosamente pelas diferentes acepções que tal termo adquire na obra de Freud e mesmo na psicanálise, explicando e discutindo rigorosamente as suas variações consequentes, tanto na clínica quanto na historiografia. [De fato, Oscar sugere que tenhamos cuidado com a banalização e o achatamento do conceito, como se ele pudesse ser reduzido a um sinônimo de 'egoísmo' ou 'egocentrismo' - algo que parece acontecer, por exemplo, quando, ao descrever as personalidades narcísicas muito estudadas pelos americanos, cria-se o equívoco de se pensar que haveriam outras que não o fossem. E, ademais, ele nos lembra que, em se tratando de uma complexa articulação conceitual entre vários termos como libido, pulsão, eu, auto-erotismo, outro, o 'narcisismo' está longe de ser uma clara unanimidade em diferentes escolas psicanalíticas.]

Texto produzido por Elabora Psicanálise Acessível.

Nanci Shirazawa

Psicanalista e psicóloga (CRP 06/59756) graduada pela Universidade Paulista de São Paulo, com MBA RH pela FIA USP. É especialista em Teoria Psicanalítica pela PUC SP e participou de grupos de estudos sobre Psicanálise. Foi executiva em grandes empresas e, há alguns anos, realizou sua própria transição de carreira. Fez Formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, trabalhou na ONG Semear com atendimento a crianças em situação de abrigamento e profissionais de abrigos e foi terapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Atualmente, é psicanalista, atende adolescentes e adultos em consultório particular, além de psicoterapeuta no projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae.

Psicanálise, Psicologia e Psiquiatria. Qual a diferença?

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Você já deve ter se questionado sobre a diferença entre psicanálise, psicologia e psiquiatria. E responder essa questão realmente não é uma tarefa simples, pois todas trabalham com questões da psique humana, todas tem um fazer clínico e todas tratam o sofrimento decorrente de algum mal estar mental ou emocional. Quando se está em sofrimento, o que mais se quer é que ele acabe, de modo que, num primeiro olhar, qualquer uma dessas especialidades poderia ser uma possibilidade. Mas, então, no que se diferenciam? Basicamente no entendimento de como funciona o psiquismo humano e, por isso, as propostas clínicas são muito diferentes, pois cada uma tem um modo de escuta e intervenção.

A psiquiatria é uma especialidade médica, trabalha com as referências de saúde e doença, normalidade e anormalidade, padrões que balizam o que seria uma patologia, inclusive trabalham com um manual que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, o DSM (Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental). A compreensão sobre a pessoa que está em sofrimento é determinada sob o ponto de vista do orgânico - do corpo - e da disfunção que esteja ocorrendo. Os psiquiatras, por serem médicos, têm a competência para prescrever psicofármacos no tratamento das patologias, o que pode ser um auxílio importante em casos mais graves, como o de angústias paralisantes e desorganizações da personalidade. Muitos psiquiatras costumam trabalhar em parceria com psicólogos e psicanalistas, por compreenderem a limitação da abordagem orgânica diante da complexidade do sintoma.

Quanto à psicologia e psicanálise, faremos uma comparação entre duas de suas linhas principais*: vamos nos ater à cognitiva comportamental quando falamos de psicologia, por ser a que mais se diferencia da psicanálise e ser a mais conhecida. E no caso da psicanálise, utilizaremos a abordagem freudiana, por também ser a mais conhecida e servir de base para todas as demais. Sendo assim, em quais aspectos se diferenciam de forma decisiva?

A psicologia tem como base de estudos a observação do comportamento humano. A partir dessa observação consegue estabelecer parâmetros de classificação e, nesse sentido, padrões de normalidade e anormalidade. O sintoma seria um problema por ser um desvio daquilo considerado normal, tal como trabalha a psiquiatria. Apesar da psicologia considerar a existência de algum tipo de inconsciência, a instância determinante para ela é a consciência. Seu fundamento clínico é o direcionamento da consciência, por meio de exercícios e técnicas específicas, a fim de corrigir e eliminar determinados desvios.

Segundo a teoria cognitiva, existem erros lógicos de processamento de informações sob a forma de pensamentos disfuncionais e distorções cognitivas, que são causas de síndromes e transtornos. Consideram-se os fatores relacionados ao problema, mas o objetivo imediato é o alivio do sintoma e a volta ao funcionamento antes da crise. Trabalha-se com aconselhamentos, técnicas de autocontrole, aprendizagem através de estímulos visando comportamentos desejados, treino de habilidades, além de técnicas cognitivo-comportamentais tais como exposição gradual, reforços, correções de crenças e pensamentos e manejo ambiental.  

A psicanálise, por sua vez, entende que o psiquismo humano é uma complexa trama imaginária, ou seja, uma rede de significações que atribuímos às coisas, constituída muito precocemente, a partir de ininterruptas experiências de frustração e satisfação com o ambiente e que produzem expectativas, desejos, medos e conflitos. A constituição do psiquismo sempre deixará marcas e sintomas, e estaremos sempre a lidar com nossa precariedade diante da vida. Não existe “a normalidade”.

Sob esta perspectiva, a singularidade de cada pessoa é privilegiada e os sintomas são expressões de conflitos que nos habitam, relacionados a desejos inconscientes e, portanto, falam de quem somos, são resultados da forma como pudemos lidar com a vida, de acordo com os recursos que tivemos. Mas, sem que possamos controlar, algumas vezes eles trazem sim muito sofrimento e limitam a vida: somatizações, comportamentos indesejados que se repetem ou angustias sem nome. Isso fala da existência, em todos nós, de uma dimensão desconhecida - o inconsciente - a qual não temos acesso direto, mas que mobiliza nossas ações e sonhos. Esse é um pressuposto essencial da psicanálise e fundamento clínico sobre o qual se dará o processo analítico.

O psicanalista possui um conhecimento sobre a dinâmica do psiquismo humano, além de uma competência específica, a escuta diferenciada, que lhe dá condições para acompanhar o paciente nessa descoberta. Empresta a si mesmo como participante no processo, pois o encontro psicanalítico se dá a partir da transferência, uma relação dinâmica e singular que se estabelece entre analista e analisando. Nesse processo a dimensão consciente está presente, mas, principalmente, abre-se espaço ao inconsciente, possibilitando que a trama imaginária tão particular possa surgir. Durante esse trabalho, o analisando pode entrar em contato com seus afetos, muitas vezes suprimidos, realizar novas elaborações, construir outras formas de se relacionar com as pessoas e ter condições para estar mais apto a lidar com os limites da vida.

Por mais que a análise possa gerar bem estar, a psicanálise não se restringe a isso, pois não tem a pretensão de direcionar a consciência para aquilo que seria o bom, o normal e o certo. Não há julgamentos. A ideia é que, através da experiência analítica a pessoa possa aproximar-se dos seus próprios desejos e passar a ser autora de sua vida, ou seja, não ficar submetida aos seus sintomas. O processo amplia a visão que temos de nós mesmos, e como consequência pode tornar a vida mais interessante e flexível.

Mas então, se estou sofrendo, se preciso de ajuda num determinado momento da vida, a quem devo procurar?

Como vimos, são três áreas que possuem pontos de interseção importantes, mas que têm cruciais distinções nas formas de entender a dinâmica psíquica do homem, os sintomas e a função da clínica. Com qual tipo de trabalho você se identifica mais? Qual parece fazer mais sentido para sua vida? A partir das respostas a essas questões, procure alguém ou alguma instituição que lhe inspire confiança. Espera-se que um bom profissional escute sua necessidade e proponha um trabalho ou então faça um encaminhamento.

Como saber se o profissional é bom? Apesar de a internet possibilitar maior acesso às informações, só há uma forma de “saber” se aquele profissional é o que vai conseguir lhe ajudar: por meio do encontro e do que ele terá provocado em você, portanto fique atento às suas próprias percepções e, caso sinta vontade, conheça outros profissionais. O processo terapêutico acontece desse encontro entre duas pessoas onde uma relação muito singular terá início, e só através dessa experiência será possível saber se aquele é o profissional que você procura. Este é o primeiro passo.

* Há diversas linhas dentro da psicologia, sendo as mais conhecidas: linha junguiana, Gestalt terapia, fenomenológica, cognitiva-comportamental, psicodrama. Na psicanálise: linhas baseadas em Freud, Lacan, Melanie Klein, Bion, Winnicot.

** Se quiser saber mais sobre a origem dessas três áreas de conhecimento, acesse o vídeo do psicanalista Christin Dunker. (https://www.youtube.com/watch?v=FjYvwYuCsDE)

 Texto produzido por Elabora Psicanálise Acessível.

 

Nanci Shirazawa

Psicanalista e psicóloga (CRP 06/59756) graduada pela Universidade Paulista de São Paulo, com MBA RH pela FIA USP. É especialista em Teoria Psicanalítica pela PUC SP e participou de grupos de estudos sobre Psicanálise. Foi executiva em grandes empresas e, há alguns anos, realizou sua própria transição de carreira. Fez Formação em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, trabalhou na ONG Semear com atendimento a crianças em situação de abrigamento e profissionais de abrigos e foi terapeuta no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Atualmente, é psicanalista, atende adolescentes e adultos em consultório particular, além de psicoterapeuta no projeto COMPOR, na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae.